"E tudo era azul, Marco, azul e frio.
Comecei a nadar. Não tinha mais medo. Nadava sem saber para onde, mas confiante de que chegaria em algum lugar.
Não, eu não parava para descansar. Não havia como. Onde eu me apoiaria? Era só a água azul e fria; a pálida luz azul que vinha do fundo insondável e os distantes vitrais no teto, nos quais o reflexo azul da água se projetava sob escuridão de um céu sem nuvens e sem estrelas. Mais nada.
Não sei por quanto tempo nadei até que senti meus braços esbarrarem em sua pele. Parei estarrecido.
Sim, Marco, era ela. A mesma moça dos cabelos vermelhos. A que me observara silenciosa durante o estranho ritual dos homens de terno; a que me conduzira para fora do labirinto, que sorria para mim, distante, das janelas dos edifícios.
Mas ela já não sorria. Estava nua, como eu, mas não nadava. Flutuava estranhamente: não movia as pernas e seus braços se apertavam sobre os seios tentando se proteger do frio azul, que dava um tom pálido a sua pele, tingia seus cabelos de um roxo triste.
Ela que, com um sorriso tranqüilizador, tomara minha mão e me mostrara a saída do labirinto de azulejos brancos , me lançava agora um olhar melancólico e pedia minha ajuda. Era ela, agora, que queria sair dali.
Mas o que podia eu fazer? Só então percebi que não tinha a menor idéia de onde estava e já não sabia mais porque nadava a tanto tempo. Olhei para o vazio em que me encontrava e tive medo.
A abracei. Com todas as forças que ainda tinha. Seu corpo ainda era mais quente que o meu. Sentia sua respiração assustada em meu ouvido e a apertava com força. Nossos corpos se entrelaçaram – flutuávamos.
E foi só quando nos beijamos que a água começou a se mover. Como um mar revolto. Ondas conduziam nossos corpos. A luz foi ficando mais intensa, até o azul dar lugar a um clarão que não nos permitia enxergar nada além de um ao outro.
Não demorou muito e percebi que havíamos chegado a uma espécie de porto. Nossos pés tocaram um chão de pedra, de um lugar que lembrava a ruínas de um templo antigo invadido por um rio. Um lance de escadas nos levou a um quarto.
Era pequeno e branco sem nada além de uma grande cama. Uma janela ampla, de vidro, deixava entrar o sol de um dia bonito. Lá fora, pessoas passavam apressadas, distantes. Estávamos em um prédio alto.
Deitamos e nos amamos. E seu corpo era quente, seu coração batia forte, sua respiração fazia tremer as janelas e seus cabelos exalavam um cheiro doce que enchia o quarto e me entorpecia como uma droga.
E tudo era ela. Tudo era vermelho e tudo fazia sentido. Nós riamos da pressa das pessoas lá embaixo e de tudo que acontecera até então. Ela me contava do caminho que fizera até ali e de como havia se perdido. E eu lhe perguntava o que era tudo aquilo e o que tinha acontecido naquela manhã em que as pessoas desapareceram. Ela sorria e dizia que também não sabia, e era o bastante. Estávamos felizes.
Mas então, Marco, algo aconteceu. Um barulho lá fora. Algo sério e ruim. Eu não tive coragem de olhar pela janela para ver o que era. Seu sorriso se desfez e ela disse que precisava ir. Que estava triste porque queria voltar mas não sabia se eu ainda estaria ali. E eu disse, assustado, que também não sabia. Que desde aquela manhã de segunda feira eu seguia sem saber onde estava, num fluxo de lugares e pessoas que não entendia. Disse que tinha medo de que ela se fosse, porque as coisas só pareciam fazer sentido quando ela aparecia.
E enquanto eu dizia isso, Marco, ela desapareceu. Foi o piscar de olhos entre uma palavra e outra ela já não estava mais lá.
Marco, de tudo que aconteceu, nada me perturba e entristece mais que isso. Tanto que eu nem sei bem como te contar. Saí do quarto tentando a encontrar, mas me deparei apenas com corredores escuros e vazios de um prédio de escritórios. Tentei voltar, mas a porta já estava trancada.
Estava perdido de novo."
O' Toothle - Flow